Via de mão dupla

Dançamos, pulamos, corremos, movimentamo-nos nas três dimensões do espaço enquanto nossa cabeça, em cima de todo esse fuzuê, permanece relativamente imóvel, desfrutando de certa calmaria. Para o bom funcionamento de nosso organismo, a cabeça é mantida um tanto independente dos movimentos do corpo, requisitando para isso informações contínuas sobre nossa posição no espaço. O corpo, porém, só participa definitivamente como integrante deste mesmo espaço em virtude do sentido da visão.

O sistema visual está conectado aos sensores de posição desde o início de nossa gestação. Intimamente relacionado aos músculos posturais, o sentido da visão tem a tarefa de manter o mundo estável, fazendo os ajustes necessários nos olhos, na cabeça e na postura para compensar as mudanças no fluxo óptico que acompanham as alterações de movimento.

A visão é, portanto, fonte direta de informações sobre o próprio corpo e ajuda a ligar nossa imagem ao meio. Podemos nos enxergar no espaço e calibrar continuamente o sistema motor. Esse aspecto perceptivo contribui para a construção da própria imagem.

A interpretação das informações visuais sobre o movimento no espaço – visão consciente, foveal – fornece dados de como o corpo se relaciona com o ambiente e, desta maneira, educa o corpo, desempenhando papel postural preponderante. Com freqüência a propriocepção visual se sobrepõe ao sistema vestibular e leva a um senso de movimento equivocado. Por exemplo, quando você está parado no trânsito e o carro ao lado começa a movimentar-se, você tem a súbita impressão que está se movendo também.

L´homme et son esprit-illus.Folon (Le Livre de Sante -v.10- 1967)

As informações recebidas dos órgãos dos sentidos e interpretadas à luz da consciência sofrem interferência da própria consciência. É fácil constatar a dificuldade que sentimos em nos concentrar quando estamos preocupados, agitados ou assustados. Nestas condições, deixamos de ouvir um interlocutor que nos fala diretamente ou de enxergar um objeto imediatamente à nossa frente e, naturalmente, sofremos os reflexos posturais desta situação.

Se, por um lado o movimento é influenciado pela consciência e pelas emoções, por outro prefigura a maneira como nos tornamos conscientes de nós mesmos e contribui não apenas para organizar o desenvolvimento das estruturas neurais responsáveis pela ação motora, mas como nos comunicamos com os outros e nos relacionamos com o meio. A “corporificação molda a mente” (Shaun Gallagher, 2005) e pode tornar-se a via franca para reverter um processo de déficit de atenção ou distração, por exemplo.

A interferência de nossa visão sobre nossa postura é óbvia. Para manter o equilíbrio, buscamos continuamente pontos estacionários no ambiente onde podemos ancorar nosso olhar.  Durante a execução de posturas unipodais de Yoga, como ardha-chandrasana, vriksasana ou virabhadrasana III, evidencia-se a dependência da estabilidade óptica no equilíbrio postural, assim como a influência da concentração na manutenção destas posturas.  E como em uma via mão dupla, a execução destas posturas irá exigir que deixemos de lado toda a série de estímulos capazes de interferir na realização destas posturas, selecionando e aperfeiçoando nossa capacidade de focar.

Ardha Chandrasana

Qualquer parte do corpo pode ser trazida à luz da consciência e também pode, felizmente, deixar de depender de nossa intervenção para  seu funcionamento. O corpo trabalha sozinho para manter a postura e governar o movimento com base nas informações recebidas de inúmeras fontes. Assim, uma pessoa normal e saudável pode, de modo geral, esquecer-se de seu corpo durante boa parte de sua rotina diária. O corpo cuida de si mesmo e, desta maneira, libera o sujeito para que, com facilidade, dedique-se a outros aspectos práticos de sua vida.

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