Levamos muito chão antes de nos adaptarmos a uma base tão pequena quanto nossos pés. Tirar as patas dianteiras do chão e equilibrar-se apenas sobre as traseiras foi tão difícil para nós quanto é para qualquer quadrúpede que pretenda o mesmo.
A primeira coisa que tivemos que fazer para carregar a nós mesmos por aí foi entender como equilibrar tudo aquilo que está acima da bacia sobre nossas pernas, incluindo a própria bacia. Quando cansamos de engatinhar, a pelve deixou de ser apenas o elo que liga as pernas ao restante do corpo para tornar-se uma plataforma de apoio para o tronco, membros superiores e cabeça. Esta mudança alterou o papel dos músculos do quadril e exigiu uma reorganização de todo o corpo à nova posição.
Um quadrúpede não precisa se preocupar muito em manter o equilíbrio. Sobre quatro patas, os músculos do quadril trabalham especificamente na função para a qual foram designados, atuando com grande eficiência na produção de força. Completamente adaptado, o corpo do animal responde com absoluta liberdade às solicitações dos sentidos e assume uma postura para cheirar, uma para ouvir, uma para olhar e muitas outras para locomover-se.
Na mudança de quatro para duas patas, a bacia mudou de posição em relação ao chão e grande parte de nossa força e mobilidade ficou comprometida. Os ligamentos ao redor da articulação do quadril se enrolaram no colo do fêmur, grudando com tanta força as pernas na bacia que artroses do quadril se tornaram freqüentes em nossa espécie. O osso do fêmur, antes perfeitamente encaixado em sua cavidade articular, passou a expor parte de sua cabeça quando ficamos em pé, responsabilizando a musculatura adjacente pela manutenção da estabilidade na articulação. O apoio precário sobre o qual começamos a nos equilibrar exigiu grandes mudanças nos músculos do quadril, alterando suas atribuições ‘originais de fábrica’. Ao nos equilibrarmos sobre as patas traseiras, enfim, perdemos a chance de pular como gatos, escalar como macacos ou correr como cavalos.
Nosso endireitamento levou os músculos do quadril a acumular diferentes funções de acordo com a postura assumida. Algumas ações musculares serão até mesmo completamente invertidas durante determinados movimentos, promovendo mudanças que irão afetar profundamente nossa estrutura corporal, tornando-nos parecidos com o que somos hoje.
Virabhadrasana III
Músculos da bacia, como os glúteos e pelve-troncanterianos, mudaram de função e viraram potentes rotadores externos com o nosso endireitamento. Em Virabhadrasana III, nossa bacia volta à quadrupedia e a cabeça do fêmur sobre a qual nos apoiamos fica totalmente encaixada na articulação. A estabilidade articular, porém, pode não ser seguida pelo equilíbrio muscular. Desacostumados a manter a bacia nesta posição, os músculos da pelve descontam no piriforme sua ineficiência em situações como essa. Girar a coxa de apoio para dentro e empurrá-la para trás proporciona um melhor alinhamento das fibras musculares e otimiza o desempenho muscular na manutenção da estabilidade da bacia nesta postura.
Ardha Chandrasana
Se acionamos deliberadamente a musculatura do glúteo, podemos observar a surpreendente facilidade com que este músculo irá girar a bacia para cima, suspendendo todo o corpo sobre a perna de apoio: entramos em Ardha Chandrasana. Para tornar a postura possível deve-se ainda girar a coxa de apoio para fora. As superfícies de contato do nosso acetábulo são feitas para o quadrúpede, isto é, para uma posição de flexão da coxa em relação à bacia de 90 graus como na postura anterior. Ao girar o fêmur para fora evitamos que o trocanter maior venha a apoiar-se na parte mais proeminente do acetábulo do quadril. O choque entre essas partes inviabiliza o movimento. Em posturas como Upavishta Konasana, Prasarita Padotasana e Anantasana acontece a mesma coisa.
Pelve
Colocado em uma postura particular e conservado assim por longo tempo, o corpo evidencia suas forças e fraquezas, desequilíbrios e assimetrias, restrições e possibilidades. Ter lucidez sobre a maneira como respondemos aos estímulos e interferir com precisão nos movimentos, eliminando componentes de força indesejados, abre uma importante via para escaparmos dos domínios da enfermidade.
Alheio à consciência, o ‘endireitamento’ promoveu mudanças no corpo que perturbaram nosso equilíbrio de maneira geral. A expansão dos limites da consciência sobre o corpo através da prática do Yoga devolve ao corpo o privilégio de ser ouvido. Trata-se de uma aquisição demorada, mas que transforma definitivamente a maneira como vivemos.
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