Zumbis à procura de cérebros no filme “The Return of the Living Death” (1985)
“Penso, logo existo”. O que surpreende na conhecida afirmação de René Descartes, publicada em 1637, é que a razão pela qual existimos não é o corpo, mas a mente. Assim, Descartes cavou uma vala entre o corpo e a mente que permanece aberta até hoje em nossas reflexões sobre como nos relacionamos com o mundo e com nós mesmos. A noção cartesiana de que existe algo dentro de nós, que pensa e independe do corpo, sedimenta a idéia de consciência separada do corpo que dispomos hoje.
O homem e seu espírito -illustração de Folon (Le Livre de Sante- v.9 -1967) 900
A reflexão contemporânea não foi muito além de colocar o “cérebro” no lugar da “coisa pensante” cartesiana. Entendemos nossa dinâmica com o meio a partir de que algo existe a priori em nosso sistema nervoso e é colocado “para fora” através do corpo.
Enquanto aguarda um corpo, o cérebro de Morbius é mantido vivo em episódio de Doctor Who.
Não há, porém, como a consciência ser puramente um fenômeno neural e ter no cérebro a sua única morada. Graças à subjetividade sensório-motora, uma pessoa imediatamente percebe-se em contato direto, efetivo e íntimo com seus movimentos e reconhece ininterruptamente as condições gerais de seu próprio organismo. O corpo, dentro de sua dinâmica, informa-nos a respeito do mundo e serve de estrutura espacial para a formação da experiência consciente a partir de um ponto-de-vista único e vantajoso: “eu”.
Uma vez que a experiência da consciência é estruturada pela dinâmica do corpo em sua interação sensorial com o meio, a consciência não pode ser algo que acontece exclusivamente em nosso cérebro, mas algo que existe pelo engajamento do corpo no mundo. É óbvio que devido à nossa organização física não podemos enxergar sequer o que está atrás de nossas próprias costas, quanto mais olhar para os confins do universo em busca de nossas origens ou procurar dentro do átomo o elemento primordial da matéria. Mas sendo a experiência da consciência uma função determinada pela relação do corpo com o ambiente, o corpo é condição de inteligibilidade do mundo, ou seja, o ponto-de-partida de nossas expedições rumo ao desconhecido.
A distribuição dos elétrons de um átomo de Vanadium no plano cartesiano determina a forma como vemos a nuvem de elétrons em torno do núcleo.
Mudanças significativas em nossos sistemas vitais, órgãos e processos produzem mudanças correspondentes em nossa experiência, que podem ou não envolver o cérebro e o sistema nervoso. O mau funcionamento da tireóide, um desequilíbrio hormonal, uma descarga de adrenalina, promovem grandes mudanças em nossas emoções, afetando nossa experiência. Não devemos assim inflacionar a responsabilidade do cérebro e do sistema nervoso no estabelecimento de nossas emoções sob o risco de subestimar ou negligenciar o poder causal do corpo como um todo. Por último, na ausência de qualquer um de nossos sistemas vitais, órgãos ou processos metabólicos, o corpo, como um todo, é destruído. É neste preciso momento em que a consciência cessa. Assim a existência da consciência exige um corpo “inteiro” para existir.
Postura Urdhva Dhanurasa em corpo que sofreu processo de plastinação na exibição Body Words III de Gunther von Hagens.
Pensamos na consciência como algo que acontece dentro da gente, como a digestão, quando deveríamos entender a consciência como algo que fazemos, como uma dança compartilhada com todos e com tudo o que existe. E se a consciência depende de um corpo inteiro para existir, ela está sujeita às mesmas leis da física do sistema que a contém, como gravidade, o peso, a aceleração, etc, e todas as limitações físicas que este sistema encerra em si, como seu estado saúde, restrições físicas e motoras.
Primeira série Ashtanga Vinyasana Yoga
O lugar da consciência é a dinâmica da vida como um todo. Aliás, apenas quando nós levamos em consideração esta perspectiva holística é que a contribuição do cérebro e do sistema nervoso faz sentido. Vida mental é, antes de qualquer coisa, vida e, para tanto, é essencialmente corpo em dinâmica com o meio. Não é possível entender um sem o outro.